sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Apocalipsique

“Hoje, às três da tarde.” Tudo começou depois de ter lido a notícia num e-mail, lá no escritório mesmo. Saí correndo feito louco, e sabe que eu até pude sentir o gosto de ser assim? Aposto que algum daqueles que barateavam pelas ruas do centro acharam que eu tivesse um parafuso a menos. Mas não estão muito errados, porque eu devo ter deixado algum cair da cabeça enquanto corria.

Aí cheguei a casa e fui direto tomar um banho. Peguei um tanto de sal grosso que já estava amarelado no fundo do armário, mas as ervas eu não achei. Aí entrei na banheira. E fiz minha própria limpeza espiritual para poder purificar-me. Fiquei por um tempo sorvendo o vapor quente que entrava pelas narinas e ia até às entranhas. Ia e voltava, e eu assistindo o seu ballet.

Terminei o transe com o vapor e, agora mais calmo, escolhi a melhor roupa. Coloquei aquela camisa rosa com todo cuidado para que não amassasse. Senti-me um chumaço de algodão. Vesti a calça. E finalmente o mocassim. Eu não queria terminar com um calçado que uso todos os dias, mas não tinha muito tempo. Penteei os cabelos enquanto ouvia o ruído estrondoso do avião que arranhava as coberturas dos prédios. Aquele seria o seu último voo. Passei um tanto a mais de perfume (e nesse momento pude perceber que eu poderia ter feito isso há muito tempo) e fiquei por mais alguns instantes pensando em tudo o que estaria por vir. Talvez fosse dolorido, talvez mágico. Mas seria derradeiro.

Saí do quarto altivo e imponente. Todos os móveis da casa pareceram reverenciar-me e eu desfilei vagarosamente e com o peito estufado. Confesso que senti um pouco de dor nas costas mas nada estragou a minha soberania. Parei em frente ao aparador, pus as mãos à cintura e passeei com os olhos sobre sua superfície como se ali houvesse uma adega inteira. Mas só havia um Borgonha safra 1987 que a Sandra me trouxe da França. Peguei o abridor, forcei um pouco a rosca ressecada. Pus na taça como se estivesse pondo um filho no berço. E o vinho cochilou.

Um frio invadiu o apartamento pela sacada. Tudo começou a ficar mais quieto e rijo. O relógio abaixou o tom. Olhei para o Borgonha novamente e dessa vez ele parecia estar coagulado.

Respirei fundo e virei-me. Estava cara a cara com a sacada. A porta estava estreita, mais distante que o normal. Um passo. Outro. Mais um. Outro. Mais um. A cabeça baixa, o mocassim abrindo caminho e a taça firme entre os dedos.

Aí levantei a cabeça. Sentei-me na cadeira de área, de frente para o mundo. A silhueta da cidade era fria. Respirei novamente. As lembranças começaram a chegar em fila, uma a uma, pela última vez. Um amor furtivo, uma conta pendente, um primo perdido. Tudo veio à tona. Pausei meu segundo transe do dia para olhar ao relógio e levar a taça à boca. Sete para as três. Recordei-me de minha empatia ao número sete. E se eu tivesse sete vidas, talvez não precisasse estar ali.

Mais alguns punhados de considerações e eu senti os devaneios começando a gotejar. Não havia mais vinho na taça. O relógio: quatorze e cinquenta e nove.

Fechei os olhos. E, voilà, tudo sumiu. Eu, inclusive.


Inclusive eu.


E os olhos levantaram-se. Abriram-se como guindastes. Surpreso, observei a mesma silhueta, ouvi o mesmo som do avião, senti o mesmo mocassim no pé.

O desgraçado do e-mail estava errado. O fim do mundo não era hoje.


Guto Stresser

6 comentários:

  1. Nossa Guto, estou completamente sem palavras. Fantástico, maravilhoso, perfeito.
    Senti como se eu estivesse dentro dessa história.
    Não tenho o que dizer... (aplausos)

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  2. Perfeito o título, tem aquele "lance" mesmo.
    Desenvolvimento peculiarmente divino.

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  3. Cada um vive o fim do mundo à sua maneira. Queria vivê-lo com essa tranquilidade se tivesse a certeza de que seria meu último dia antes do desconhecido chegar.

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liberdades saborosas