domingo, 22 de maio de 2011

Rua Faminta

Com o tempo, as ruas foram sendo rebatizadas com diversos epítetos – a Francisco Polisuck, por exemplo, virou Chico Puta, em homenagem às mademoiselles que por tantas noites ali eram leiloadas a baixo custo pelos senhores da alta casta metropolitana.

Com o tempo também conheci a respeito dos rituais que cada um tinha durante o engarrafamento: A senhora que de mim recebeu delicada alcunha de A Caipora (por conta das ferozes e vermelhas mexas) ouvia a estação 98.6 AM e usava brincos Lady Di. Assustei-me quando, certa vez, ao olhar para os carros ao lado, vi Caipora com os cabelos nigérrimos. Havia também um cardiologista do Santíssima Mãe que aproveitava o tempo lendo “1001 Maneiras de Seduzir sua Mulher”. Quando se empolgava, alimentava os olhos dos observadores – como a mim – erguendo inconscientemente o livro e forçando a vista num ato típico de macho dominador. Infartou em maio de 92 enquanto brincava num dos bordéis da Chico Puta. Outra figura inesquecível é a de Paulo da Gaita. Banguela de pouco estudo, o senhor saía a desfilar por entre as ruas com sua gaita enferrujada encantando até os mais rudes motores que diariamente hibernavam naquele local.

E mesmo com a tarefa de cuidar da vida de todos que por algumas horas faziam-se vizinhos, minha cabeça era incumbida de dividir-se em doses homeopáticas. Meu maior e mais silencioso assassino foi, por longos anos, o tempo gasto nos congestionamentos. O asfalto fez careca não somente o pneu.

Quando abri os olhos, o tempo tinha passado e a cidade traiçoeira havia comido grande parte de mim. A Lua-de-mel cristalizou-se, a França dos amores tornara-se apenas viagens a trabalho, a sanfona de papai virou cobiça de quinquilheiros de plantão. Nas fotos da formatura do filho, nas canjas-com-pão em noites frias, nas discussões, nas aulas de piano para sempre inacabadas, no cerne da vida, em nada estive presente.

Sem muita surpresa, retorno ao ponto de onde parti. Observo um verde sorriso do sinaleiro que no fundo assistiu de camarote ao espetáculo cotidiano. Lembro-me como se fosse hoje de quando nas veias negras da cidade, fui sangue.


Guto Stresser.



Texto produzido para a Oficina de Contos da Biblioteca Pública do Paraná, ministrada por Miguel Sanches Neto.