terça-feira, 2 de novembro de 2010

Súplica de Passagem.

Aos milhares de Joões Ninguém que nascem e morrem dentro de nós, a cada dia.

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Não tenho como deixar dinheiro, matéria, coisa assim ou coisa e tal: Entre o bem e o mal, me restou a pobreza. Se por acaso me falta a beleza? Ora, não conheço vaidades. Meia dúzia de verdades e papelões ainda restam na minha casa. Aliás, minha casa sou eu, minha casa mim. Caramujo feito assim, morro hoje com barba asquerosa e nunca feita e um orgulho que até ao viaduto despeita.
Risos pigarreados. Orgulho do quê? Resta-me desgraçadamente apenas um dégradé de vícios e moradias. Com a maior das alegrias, eu, respeitável Conde de Neca de Pitibiriba dormi em mil noites frias e diferentes entre si. Faltaram-me cobertores quentes, em nenhuma família cabi. Morro hoje, mas morro com o triunfo ereto pela graça de ser o que fui, na alegria, na tristeza, nas promessas e nas ruas.
Dou meu teco no último cachimbo e suo os últimos devaneios moribundos. E de todos os vícios vagabundos, o melhor sempre foi lutar contra a verdade de ser mendigo – jogo o cachimbo no chafariz da praça, ele morre instantes antes de mim.
Nos áureos últimos minutos, concluo que aprendi a mergulhar na desgraça. Talvez fosse interessante se criassem uma mãe para entregar o seu filho na hora da morte. Se isso já existe, desconsidere o que eu disse. São meus neurônios que entram em eterno sono, já não mais fortes. Últimos risos pigarreados.
Atenciosamente,

Dom João Ninguém XVI do Condado de Neca de Pitibiriba.


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(Carta encontrada junto ao corpo de um mendigo na Praça da Sé, em 2 de novembro de 2010.)








G’ Stresser.

11 comentários:

  1. Olá!
    Parabéns pelo blog, G' Stresser ;D
    Já estou seguindo.

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  2. Caraca, rsrsrsrs

    curti pacas o texto,não entendi só a assinatura é seu ou foi realmente encontrado?

    abraços meu caro

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  3. Meu Deus, fiquei chocada. Incrivel. Um menosprezado mendigo capaz de fazer mais arte do que muita gente que se diz artista. Vida bandida que só nos mostra valores depois de partidos.

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  4. Obrigado, Fernanda!
    Gustavo, o mendigo sou eu. E é você também. Ele não existe. E se existir, mora num lugar muito distante, onde só a imaginação pode alcançar.

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  5. Dentro mora um mendigo... Esse mesmo que morre a cada dia, dando sua última tragada e seus ultimo sorriso pigarreado. Sentindo frio, fome, desesperança. Não caibo em lugar algum e caibo em todos os lugares... Eu sou um ser transcende todos os espaços internos do meu eu. Não caibo em mim e assim quero partir, espero que breve...

    Belo texto!

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  6. Poucas pessoas conseguem ganhar minha total admiração pelo jeito que escrevem, e você foi uma delas. Seus textos são muito bem escritos, de tal forma que quase posso ver as palavras. Parabéns, continue sempre assim, estou seguindo o blog. Beijos.

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  7. Seus textos me fascinam, você é muito bom na escrita, te admiro muito, te sigo a um tempo e sempre estou aqui lendo, às vezes relendo, gosto muito.
    Parabéns. Beijos.

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  8. Muito bom!
    Parabéns,
    Guilherme

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